Avançar para o conteúdo principal

As idéias preconcebidas na arte

 Todos nós somos inclinados a aceitar formas ou cores convencionais como as únicas corretas. Por vezes, as crianças pensam que as estrelas devem ter o formato estelar, embora não o tenham naturalmente.

(Pomar e Soares conheceram-se na prisão de Caxias e ficaram amigos para toda a vida. O retrato oficial foi uma lufada de ar fresco na convencional galeria dos presidentes, merecendo críticas violentas: muitos disseram que se tratava de um esboço e não de uma pintura acabada).

                                     Mario Soares retratado por Julio Pomar

As pessoas que insistem em que, num quadro, o céu deve ser azul e a grama verde, não são muito diferentes dessas crianças. Indignam-se se veem outras cores num quadro, mas se tentarmos esquecer tudo o que ouvimos a respeito de grama verde e céu azul, e olharmos o mundo como se tivéssemos acabado de chegar de outro planeta numa viagem de descoberta e o víssemos pela primeira vez, talvez concluíssemos que as coisas são suscetíveis de apresentar as cores mais surpreendentes.

Não é fácil libertarmo-nos dessas ideias preconcebidas, mas os artistas que melhor conseguem fazê-lo produzem frequentemente as obras mais excitantes.

São eles quem nos ensinam a ver na natureza novas belezas de cuja existência nunca havíamos sonhado. Se os acompanharmos e aprendermos através deles, até mesmo um relance de olhos para fora de nossa própria janela poderá converter-se numa aventura emocionante.

  O Castelo e o Sol, de Paul Klee

Não existe maior obstáculo à fruição de grandes obras de arte do que a nossa relutância em descartar hábitos e preconceitos. Uma pintura que representa um tema conhecido de um modo inesperado é muitas vezes condenada sem outra razão melhor do que "não parece bem".

Quanto mais vezes tivermos visto uma história representada em arte, mais firmemente nos convencemos de que ela deve ser sempre representada de forma semelhante.

A respeito de temas bíblicos, em especial, os sentimentos são suscetíveis de se manifestarem com veemência.

Embora saibamos todos que as Escrituras nada nos dizem sobre a aparência física de Jesus, e que Deus não pode ser visualizado em forma humana, e apesar de sabermos terem sido os artistas do passado que criaram pela primeira vez as imagens a que nos acostumamos, algumas pessoas, no entanto, ainda são propensas a pensar que o afastamento dessas formas tradicionais equivale a uma blasfêmia.

De fato, foram usualmente aqueles artistas que leram as Escrituras com a maior devoção e atenção os que tentaram formar em suas mentes um quadro inteiramente original dos incidentes da História Sagrada.


Procuraram esquecer todas as pinturas que tinham visto e imaginar como as coisas deviam ter sido quando o Menino Jesus foi deitado na manjedoura e os pastores vieram adorá-Lo, ou quando um pescador começou a pregar o Evangelho.

Aconteceu repetidamente que tais esforços de um grande artista para ler um antigo texto com olhos inteiramente novos chocaram e irritaram pessoas irrefletidas.

Um "escándalo" típico desse género estourou em torno de Caravaggio, artista italiano muito audacioso e revolucionário que trabalhou por volta de 1600. Recebeu a encomenda de pintar um quadro de São Mateus para o altar de uma igreja de Roma.

                               A obra rejeitada pela Igreja

O santo deveria ser representado a escrever o Evangelho e, para mostrar que os evangelhos eram a palavra de Deus, teria que ser representado um anjo inspirando a escrita.

Caravaggio, que era então um jovem artista muito imaginativo e decidido, pensou longamente sobre o que deveria ter sido a situação de um velho e pobre trabalhador, um simples publicano, quando teve subitamente que se sentar para escrever um livro.

E, assim, pintou um quadro de São Mateus calvo e descalço, os pés sujos de terra e poeira, agarrando desajeitadamente o enorme volume e franzindo ansiosamente o cenho, sob a tensão da inabitual tarefa de escrever.

Ao lado do santo pintou um jovem anjo, que parece ter acabado de chegar das alturas e gentilmente guia a mão do trabalhador como uma professora pode fazer com uma criança.

Quando Caravaggio entregou o quadro à igreja em cujo altar-mor seria colocado, as pessoas escandalizaram-se com o que consideraram ser uma falta de respeito pelo Santo.

A pintura não foi aceita e Caravaggio teve que tentar de novo. Manteve-se, dessa vez, rigorosamente de acordo com as ideias convencionais da época sobre o aspecto que um anjo e um santo deviam ter.

 O resultado ainda é um bom quadro, pois Caravaggio empenhou-se arduamente em torná-lo vivo e interessante, mas não podemos deixar de sentir que o resultado foi menos vigoroso, menos honesto e sincero do que no primeiro quadro.

                                           A pintura que agradou 

Esta história ilustra o dano que pode ser causado por aqueles que repudiam e criticam obras de arte por razões equivocadas.


Fonte do texto: Gombrich, “A História da Arte”.




Mensagens populares deste blogue

Caspar Friedrich e o romantismo alemão

Caspar David Friedrich, 1774-1840 Em 1817 o poeta sueco Per Daniel Atterbon visitou o pintor alemão Caspar David Friedrich, em Dresden. Passados trinta anos, escreveu as suas impressões sobre o artista. “Com uma lentidão meticulosa, aquela estranha figura colocava as suas pinceladas uma a uma sobre a tela, como se fosse um místico com seu pincel”.                                                  O viajante sobre o mar de névoa, 1818. As figuras místicas e os génios brilhantes foram os heróis do Romantismo. Jovens com expressões de entusiasmo ou com os olhos sonhadores, artistas que morriam ainda jovens na consciência melancólica do seu isolamento social povoavam as galerias de retratos por volta de 1800.                                                            A Cruz na montanha, 1807. Friedrich afirmava frequentemente que um pintor que não tivesse um mundo interior não deveria pintar. Do mundo exterior vê-se apenas um pequeno extrato, todo o resto é fruto da imaginação do artista,

Fernando Botero, estilo e técnicas.

  As criações artísticas de Botero estão impregnadas de uma interpretação “sui generis” e irreverente do estilo figurativo, conhecido por alguns como "boterismo", que impregna as obras iconográficas com uma identidade inconfundível, reconhecida não só por críticos especializados mas também pelo público em geral, incluindo crianças e adultos, constituindo uma das principais manifestações da arte contemporânea a nível global. A interpretação original dada pelo artista a um espectro variado de temas é caracterizada desde o plástico por uma volumetria exaltada que impregna as criações com um carácter tridimensional, bem como força, exuberância e sensualidade, juntamente com uma concepção anatómica particular, uma estética que cronologicamente poderia ser enquadrada nos anos 40 no Ocidente. Seus temas podem ser actuais ou passados , locais mas com uma vocação universal (mitologia grega e romana; amor, costumes, vida quotidiana, natureza, paisagens, morte, violência, mulheres, se

José Malhoa (1855-1933), alma portuguesa.

Considerado por muitos como o mais português dos pintores, Mestre Malhoa retrata nos seus quadros o país rural e real, costumes e tradições das gentes simples do povo, tal qual ele as via e sentia. Registou, nas suas telas, valores etnográficos da realidade portuguesa de meados do séc. XIX e princípios do séc. XX, valendo-lhe o epíteto de ‘historiador da vida rústica de Portugal’. Nascido a 28 de Abril de 1855, nas Caldas da Rainha, José Victal Branco Malhoa é oriundo de uma família de agricultores. Cedo evidenciou qualidades artísticas. Gaiato, traquina, brincalhão, passava os dias a rabiscar as paredes da travessa onde vivia. Aos doze anos, o irmão inscreve-o na Academia Real de Belas-Artes. No fim do primeiro ano, a informação do professor de ornato e figura indicava “pouca aplicação, pouco aproveitamento e comportamento péssimo”. Porém, ele depressa revela aptidões que lhe dariam melhores classificações. Passava as tardes a desenhar os arredores de Lisboa, sobretudo a Tapada