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Carlos Botelho e Lisboa.

 

Carlos Antonio Teixeira Basto Nunes Botelho (Lisboa, 1899 - 1982) foi um pintor, ilustrador e caricaturista português.

Na fase inicial, marcada por um pendor declaradamente expressionista, pinta cidades, retratos e narrativas. Tema recorrente desde a primeira hora, a sua cidade natal afirmar-se-á como um tema central, seguindo a evolução do seu modo de pensar e de fazer. 


                              
Ramalhete de Lisboa - Palacio Pimenta

Lisboa será a protagonista do apaziguamento expressivo e acentuação poética dos anos 40; será Lisboa que servirá de mote para as experiências abstractas dos anos 50; e será Lisboa que
o ocupará, quase exclusivamente, nas últimas décadas.

Para
entender a obra de Botelho, é necessário compreender como as duas linhas principais do seu trabalho ao longo dos anos 30 e 40 - o desenho humorístico praticado no “Ecos da Semana” e a sua pintura - existem em territórios separados com apenas raras sobreposições. 


Quando Carlos Botelho retomou a pintura em 1929, pouco depois da grande revelação que foi a sua primeira viagem a Paris, não foi na produção gráfica anterior ou no desenho de humor que ele procurou os pontos de partida; o regresso foi feito sobretudo através das categorias solidamente estabelecidas que tinham aflorado na sua juventude: retrato e paisagem.


Naquele período de "produção deslumbrante" e "muito densa" que Botelho viveu na década de 1930, vê-lo-emos utilizar uma linguagem pictórica expressionista que se distingue claramente do grafismo do “Ecos”, comprometendo-se fundamentalmente em três vias temáticas diferentes:

Primeiro, a paisagem urbana e, desde o início, a cidade onde ele nasceu e viveu. Lisboa destaca-se rapidamente como "a iconografia predominante, o corpo mesmo do aprofundamento dos recursos do pintor e da sua poética sucessiva". Contudo, este não é a via quase-unica que encontraremos no seu trabalho posterior: "a paisagem é enunciada como uma possibilidade na carreira apenas iniciada, mas ainda não é a matriz imperativa do futuro".

                   Vista de Lisboa - Sto. Antonio dos Capuchos - Palacio Pimenta

Botelho também vai pintar outras cidades: Paris, Florença, Amesterdão, Nova Orleães e, acima de tudo, Nova Iorque. "Em termos de arte portuguesa, no final dos anos 30, estas pinturas estavam na vanguarda de tudo o que então era feito".


Paralelamente às paisagens urbanas, e "com a intenção de se libertar da apreciação rigorosa que o tinha consagrado como humorista", Botelho assume as suas opções com empenho social, fazendo pinturas que o aproximam, temática e estilisticamente, da "pintura expressionista na tradição nórdica, enunciando um sentido de pesquisa conotativa com o período holandês de Van Gogh". Os seus saltimbancos, os seus cegos ou pescadores são figuras materiais e densas que nos mostram uma outra faceta do seu trabalho.

A terceira via que o ocupa ao longo da década inicial é o retrato, que culminará com os retratos de Beatriz (sua esposa), dos seus pais e filhos. E se o retrato do pai do artista (o músico Carlos Botelho - ou Meu Pai), de 1937, já é "um momento axial da obra do pintor", os retratos das crianças refletem a autonomia da sua abordagem: "Não devemos ceder ao gosto convencional nestes dois retratos, não há sentimentalismo para os modelos, mas sim uma brusquidão de gesto e atitude, como se a convivência íntima com eles não perturbasse o desejo de pintar".


A partir da década de 1930, a Lisboa de Botelho tornou-se um universo intensamente pessoal capaz de revelar algo profundo, oferecendo-nos "a visão de uma cidade arquetípica cuja beleza é a forma mediadora da verdade de um povo ou da sua antropologia específica". Com uma grande simplicidade de processos e efeitos. Botelho criou um universo plástico que é como o espelho simbólico e imaginativo de uma das facetas mais significativas do espírito português".

Em pinturas como Ramalhete de Lisboa, 1935, o pintor regista a cidade, "mas, mais profundamente, inventa-a, deslocando os acidentes e os lugares, submetendo-os a uma exigência plástica. No entanto, esta cidade "pintada" é tão real, ou mais real do que a cidade existente, que a reconhecemos profundamente".


Sutilmente, a sua pintura irá mudar. O abrandamento da intensidade expressionista abre o caminho para outra dimensão poética e para a "descoberta da trivialidade da tela, onde formas e cores são inscritas de acordo com uma escolha de frontalidade". Nos anos 50, esta opção foi radicalizada em diferentes obras onde a abstracção está mais próxima do que nunca. Pinturas como
Velho Casario, 1958, baseiam-se em princípios modernistas, tais como a autonomia da linha ou a rejeição da perspectiva tradicional, assumindo abertamente a frontalidade da composição.


Os princípios formais investigados nestas obras aparecerão, pouco depois e sob outras
vestes, na estruturação formal das paisagens urbanas que o ocupam até ao fim: "O último choque produtivo obteve com a afirmação do abstraccionismo nos anos 50, através da Escola de Paris e Vieira da Silva. Isto foi decisivo para os ciclos da longa produção final: não cortou com o corpo metafórico de Lisboa... mas disciplinou-o, em rimas e espacialidades cromáticas em que a luz é o referente determinante.


BOTELHO, Manuel –Os espaços do desenho. In: BOTELHO, Carlos –Botelho, Desenho: Exposição Comemorativa do Centenário do Nascimento. Almada: Casa da Cerca, Centro de Arte Contemporânea, 1999,

SILVA, Raquel Henriques da - Botelho, retratos de Lisboa, de gente e lembranças de outras cidades. In: BOTELHO, Carlos -Botelho: centenário do nascimento. Lisboa: Fundação Arpad Szenes - Vieira da Silva, 1999,

SILVA, Raquel Henriques da –A descoberta de Lisboa. In: SILVA, Raquel Henriques da - Botelho, ManuelBotelho. Lisboa: Editorial Presença, 1995.

QUADROS, António –A Pintura de Carlos Botelho. In: BOTELHO, Carlos –Carlos Botelho. Lisboa: Editorial Notícias, 1964


Foto: Eduardo Corrales - Av. da Liberdade, Lisboa.


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